24 de fev. de 2012

A força do feminino negro em “Deusa do Ébano: Rainha do Ilê Aiyê”

Ceiça Ferreira*

Dirigido por Carolina Moraes-Liu, esse documentário registra a participação de Joseane, Talita e Aurelina no concurso da beleza negra, promovido pelo Bloco Ilê Aiyê, considerado “o mais belo dos belos”.

São vozes femininas que contextualizam a importância desse evento para a cidade, e para as mulheres negras, trata-se de “um acontecimento, que fará o Curuzu tremer”, no qual será escolhida a Deusa do Ébano: a Rainha do Ilê Aiyê, título que vai além de ser eleita a mais bela, compreende o reconhecimento da mulher negra, exatamente em Salvador, chamada de “Roma Negra”. Mas as estatísticas e também as falas de Arany Santana e Vovô (respectivamente, diretora e presidente do Bloco) nos situam sobre a realidade que existe na capital baiana, marcada pelo racismo e pela profunda desigualdade social.

É nesse contexto que acompanhamos o desejo e o empenho que essas três jovens dedicam a esse concurso. Para Aurelina, significa a mulher negra ganhar mais espaço e por isso também entende sua responsabilidade dentro dessa comunidade. Ela que já está concorrendo há quatro anos revela “esse sonho já passou por cima de mim [..] Eu desejo mais do que tudo”. E assim como ela, também Ninha que com a experiência de quem já participou várias vezes do concurso e foi premiada como princesa, agora a ensina-lhe a dançar.

Joseane (outra candidata que o curta acompanha) afirma “o concurso mostra a beleza que nós temos, ainda pouco valorizada pelas agências de modelo”, que semelhante à mídia e ao cinema privilegia um ideal de beleza eurocêntrico.

Essa histórica condição de subalternidade que a mulher negra é submetida, consolida o significado desse concurso, que segundo Arany “tornou mais fácil ser negro em Salvador”. Contra o racismo e a invisibilidade, surge essa proposta de afirmação e orgulho da negritude, e também suas raízes com a cultura e a religiosidade de matriz africana. É dentro do candomblé que o bloco Ilê Aiyê nasceu, e a ele deve sua existência, se inspira em seu rico patrimônio simbólico (cores, ritmos, mitos, valores, fazeres e princípios).

É também no candomblé, observando a dança dos orixás, que Ninha afirma ter aprendido dançar o ijexá e o jincá (ritmos tocados durante o xirê, estrutura em forma de círculo que organiza a sequência de cantigas e danças dedicada a cada orixá), necessários para a apresentação na noite da beleza negra. Logo, participar do concurso significa poder mostrar em essa origem e religiosidade negra, algo extremamente relevante em Salvador, onde apesar da baiana e de outros elementos da cultura afro serem “vendidos” como orgulhosos atrativos turísticos, ainda prevalece a intolerância ao povo-de-santo.

E essa exigência de saber dançar também pode ser entendida uma oportunidade de mostrar uma corporeidade específica, uma maneira diferente de lidar com o corpo, com qual expressa sua memória coletiva e ancestral. Como ressalta a historiadora e poetiza Beatriz Nascimento, no filme “Orí”, “a memória são conteúdos de um continente, da sua vida, da sua história, do seu passado, como se o corpo fosse o documento, não é à toa, que a dança para o negro é um momento de libertação. O negro não pode ser liberto, enquanto ele não esquecer no gesto que ele não é mais um cativo”.

Por essas razões compreendemos como a dança é tão importante, e se faz presente desde os oito anos na vida de Talita (também uma participante do concurso), que concilia a profissão de professora com o curso de dança. Ela, juntamente com Joseane, Aurelina e tantas outras jovens, com diferentes histórias de vida compartilham um só desejo: ser rainha de Ébano, aquela que representa o Ilê Aiyê no carnaval.

Pelo documentário, acompanhamos a ansiedade e a preparação dessas três candidatas ao título de Rainha do Ébano, o aprendizado das danças, as etapas de seleção, a produção do figurino e o momento mais esperado, a noite da beleza negra. E sem dúvida, essas mulheres estão mais lindas do nunca, estão odara (palavra iorubá que sintetiza a ideia de beleza suprema, que compreende ainda a bondade e a funcionalidade. Odara é bom, belo e útil).

O filme mostra a apresentação de várias participantes, sequências que nos envolvem. Impossível não se emocionar com a apreensão, a alegria e o choro delas nesse momento tão especial.  E a escolhida daquele ano, subiu novamente ao palco e agora com o título de Deusa do Ébano, Rainha do Ilê Aiyê dança majestosamente.

Duas semanas depois, essa rainha representou o bloco no carnaval, de maneira exuberante ela apresentou no figurino e na delicadeza de seus movimentos corporais o enredo do Ilê Aiyê naquele ano.

“O Ilê acertou quando criou a noite da beleza negra, porque independente dessa afirmação da estética negra, ele elevou nossa auto-estima enquanto mulheres [...] conseguimos que as mulheres dessa cidade se sentissem bonitas”, afirma Arany Santana (diretora do bloco). Concordo com ela, pois criar um concurso que afirma e valoriza o feminino já é uma iniciativa louvável, mas quando trata-se do feminino negro, acredito que é também uma atitude política.

Desvalorizadas diante de um padrão de beleza eurocêntrico, obrigadas a se enquadrarem em um lugar social que oscila entre os estereótipos da “mulata” (objeto sexual) e da empregada doméstica, é que essas mulheres negras encontram nesse concurso uma visibilidade historicamente negada, e também onde se reconhecem e são reconhecidas como detentoras de beleza, talento e uma história.

Ao destacar a cultura e religiosidade de matriz africana, nos mais diversos elementos estéticos, como no figurino e na dança das participantes, a noite da beleza negra apresenta também a possibilidade de buscar no universo do candomblé a atuação de nossas percussoras, como Mãe Aninha, Mãe Senhora, Mãe Menininha do Gantois, e também Mãe Hilda, a matriarca do Curuzu, estrela guia da comunidade negra Ilê Aiyê, que assim como tantas outras mulheres negras traziam em comum o desejo de liberdade.

Essa espiritualidade ancestral também nos oferece outros símbolos e figuras míticas femininas. Tão ricas, complexas, altivas e amorosas, como a de Oxum (dona do ouro, da prata e dos mais ricos encantos femininos); a de Iansã (orixá guerreira, mãe protetora, senhora dos ventos e das tempestades); e a de Iemanjá (mãe dos deuses, dos homens e dos peixes; e dona de todas as cabeças, por isso rege o equilíbrio emocional e a loucura).

Inspiradas na força dessas mães negras e na altivez das iabás, continuemos essa história de resistência, lutando cotidianamente contra o racismo e o sexismo, lembrando sempre que “nossos passos veem de longe”1.

Notas e Referências
Agradeço a cineasta Carolina Moraes-Liu, que gentilmente me cedeu uma cópia do filme. 
(Mais informações: http://www.documentario.com/ebonygoddess.html
1O livro de saúde das mulheres negras: nossos passos vêm de longe. Rio de Janeiro: Criola/Pallas, 2000.
CARNEIRO, Sueli. A força das mães negras. Jornal Le Monde Diplomatique. 08 de Novembro de 2007
Orí. Direção: Raquel Gerber. Textos e Narração: Beatriz Nascimento. 1989.


*Ceiça Ferreira é jornalista, doutoranda em Comunicação na Universidade de Brasília (UnB), e desenvolve atividades com mídia, culturas negras e comunicação em movimentos sociais. 



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"Deusa do Ébano: Rainha do Ilê Aiyê"
será exibido nos dias 05/03 (segunda-feira, às 12h30) e 
06/03 (terça-feira, às 15h), no Goiânia Cine Ouro (ingressos: R$1).


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